O desenho curricular e a aproximação do estado de fluxo cerebral
- Dra. Virgínia Chaves
- 11 de ago. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 12 de fev. de 2021

Já sentiu aquela sensação de estar completamente absorto em uma tarefa? De maneira que nada mais ao redor importa, quando aparentemente os sentidos estão potencializados para a execução. Você se sente feliz por estar envolvido na tarefa e sua concentração é tamanha a ponto de horas se passarem sem que perceba. Sem que sinta cansaço, sem que sinta fome. Tudo é secundário. Sem esforço, sem gasto imenso de energia. Pelo contrário, você se sente reenergizado pela execução da própria tarefa.
Já se sentiu assim? É o chamado estado de fluxo.
Acontece quando dominamos, de certa forma, determinada tarefa de maneira que conseguimos executá-la de maneira altamente concentrada, porém relaxada. O fluxo é um estado de alta concentração e tende a ser alcançado quando se há prazer na execução. Converse com artistas, pintores, cientistas e outros profissionais cujos trabalhos são executados há tempo considerável e ouça relatos impressionantes sobre o estado de fluxo.

Não precisamos ir muito longe. Nós mesmos, em algum momento da vida já vivenciamos tal estado, ainda que por momentos breves. Lembro de sentar no quarto por horas a fio estudando história enquanto ouvia música clássica. Era uma combinação extremamente eficaz que me levava a níveis de concentração elevados, o que, consequentemente, me fazia vivenciar momentos de fluxo. Entretanto, o ponto crucial no processo era: eu realmente sentia prazer estudando história ou biologia. Não me recordo de ter entrado em fluxo ao estudar matemática por inúmeras razões que, hoje, não vêm ao caso (não fui ensinada a gostar de matemática e nem soube como perseverar a ponto de começar a gostar).
Entro em fluxo quando escrevo alguns textos ou quando monto apresentações. Entro em fluxo quando dou palestras. Não é um estado frequente, mas quando acontece, é perceptível e inteiramente prazeiroso. No sentido de que o próprio estado de fluxo se traduz em recompensa e motivação para o cérebro.
Segundo o pesquisador no assunto, Mihaly Csikszentmihaly, psicólogo da Universidade de Chicago, alguns pontos são importantes no que diz respeito ao estado de fluxo:
O estado de fluxo não é decorrente da inibição das emoções e sim, de sua canalização positiva em direção à tarefa executada.
O estado de fluxo requer atenção plena e focada: concentração. O mínimo pensamento preocupante interrompe o estado ou o impede de acontecer.
Distração interrompe o início do estado de fluxo.
O estado de fluxo reflete inteiramente o prazer e maestria na execução da tarefa. Preocupações com performance e eficácia bloqueiam o estado, que deriva de total relaxamento e não, preocupação.
O fluxo ocorre entre o tédio e a ansiedade. Tarefas fáceis demais causam tédio, e tarefas igualmente difíceis geram ansiedade. Ambos inimigos do fluxo em pontos opostos.
Ao olhar para os pontos acima, é fácil fazer a conexão com modelos educacionais. Em uma pesquisa realizada com diversos estudantes de uma escola de ciências em Chicago, alunos de alto e baixo desempenho compartilharam suas rotinas de estudo. Como era de se esperar, os alunos considerados de baixo desempenho estudavam 12 horas a menos por semana em comparação ao grupo de alto desempenho.
Entretanto, a constatação mais reveladora veio da informação de que os alunos de baixo desempenho demostraram entrar em fluxo (ou sentir prazer no estudo) em apenas 16% do tempo em que permaneciam estudando. Ao passo que o grupo de alto desempenho alegou entrar em fluxo em 40% do tempo estudado. Além disso, o primeiro grupo demonstrou ansiedade e preocupação ao iniciar a rotina de estudos, sentindo com frequência que as exigências iam além de suas capacidades.
As principais lições tiradas de tais evidências, citadas por Daniel Goleman em seu livro Inteligência emocional, dizem bastante sobre o sistema educacional vigente, apesar de o mesmo já estar sendo revisitado devido às grandes mudanças no mundo atual.
Os alunos de alto desempenho (não entrando aqui no mérito da métrica utilizada para chegar a tal conclusão) são levados naturalmente ao estudo porque sentem-se felizes e recompensados ao fazê-lo. Entram em estado de fluxo com frequência ao estudar. Segundo o estudo relatado acima, os alunos de baixo desempenho encontravam estado de fluxo em atividades sociais e não, necessariamente em atividades de estudo recluso sobre disciplinas específicas.
A conclusão sobre o assunto é inevitável e chega em forma de questionamento: oferecemos a diversidade necessária de estímulos escolares a fim de fomentar diferentes estados de fluxo em nossos alunos? Em outras palavras, o aluno que passa a aula desenhando em seu caderno talvez entre em fluxo dessa forma.
Não se deve aqui interpretar erroneamente a mensagem como se os objetos curriculares fossem irrelevantes no contexto escolar. De forma alguma. Entretanto, a maneira como o currículo é direcionado precisa ser repensada. De maneira que todos os alunos tenham a igual possibilidade de entrar e fluxo com as atividades escolares. Que não seja somente executando cálculos na aula de matemática, mas que a experiência possa ocorrer na quadra de esportes ou na aula de música.
O conceito de inteligências múltiplas de Howard Gardner traz a luz para a necessidade do olhar atento às diferentes aptidões. Não somente por realização pessoal, mas também porque o alcance da maestria em atividades somente se dá pela atividade prazerosa. O pintor que gera quadros sem sentir prazer no pintar, raramente o fará com maestria. Para entrar em estado de fluxo é necessário prazer genuíno na atividade. É também verdade que muitos estudantes precisam ser orientados na busca por suas aptidões e que as mesmas são
descobertas e aprimoradas ao longo da vida escolar.
Inevitável não fazer a correlação com a proposta de Novo Ensino Médio a qual entrará em curso oficialmente a partir de 2022. A proposta de currículos cambiáveis e flexíveis causou, a princípio, estranheza. O que não percebemos é que, durante todos esses anos, decidimos deliberadamente, por meio de currículos fixos e engessados o que os nossos jovens precisavam aprender. E mais: o que os nossos jovens precisavam necessariamente gostar de fazer.
A discussão entre educadores tem sido pautada em como fazer os jovens criarem interesse pelos estudos. Estratégias de sala de aula, metodologias combinadas, tecnologia de ponta. Todas essas ações dignas e válidas. Entretanto, a pergunta anterior seria: existem alvos de interesse na escola que conversem com as diferentes aptidões do jovem atual? Uma pergunta com respostas complexas, mas que são atuais e relevantes.
Em suma: se entrar em estado de fluxo requer prazer, relaxamento e concentração em uma tarefa, difícil se torna a possibilidade de atingimento da meta quando se é constantemente levado a executar tarefas que não conversem com suas aptidões ou interesses.
Cabe às escolas e famílias atuarem em conjunto para que seus jovens realmente compreendam e construam seus projetos de vida em consonância com o que as novas escolas têm a oferecer no contexto do ensino médio.

Não será fácil executar as mudanças. Menos no sentido prático e mais no sentido de mudança de mentalidade. Os primeiros estudantes a vivenciarem o novo ensino médio terão a difícil tarefa de exercitar escolhas e vontades quando raramente tais ações eram permitidas no sentido de currículo. Acostumados com a grade definida de disciplinas, esses alunos deverão trabalhar autoconhecimento suficiente a ponto de compreender suas aptidões. Trabalho conjunto da escola e família, incluindo e conhecendo o próprio aluno.
Fica aqui a esperança de que toda as mudanças refinem aos poucos o que entendemos como escola. Que além de espaço físico concreto (o que nem mais se apresenta no contexto da pandemia) se traduza em espaço virtual ou não de descobrimento e autoconhecimento. Que se traduza em espaços onde os verdadeiros projetos de vida serão planejados e executados com o fim de trazer realização em todos os níveis da vida dos estudantes, gerando, consequentemente estados de fluxo e retorno para a sociedade em suas atividades.
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