Quando excesso de telas em casa chega à escola: hiperexcitabilidade digital e diagnósticos equivocados
- Dra. Virgínia Chaves

- 9 de out.
- 4 min de leitura

Introdução: a escola sente o que acontece em casa
Desde a aprovação da Lei 15.100, os celulares foram retirados das salas de aula em todo o Brasil. Muitos acreditaram que esse seria o passo definitivo para resolver os problemas de distração e queda de desempenho.
Mas o que acontece fora da escola continua atravessando a porta da sala de aula.
Professores relatam diariamente:
alunos sonolentos, que lutam para se manter acordados;
estudantes inquietos, com dificuldade de seguir instruções simples;
adolescentes dispersos, trocando de atividade a cada minuto.
Esses sinais não nascem dentro da escola, mas chegam até ela carregados pelo excesso de telas em casa.
Quando a hiperexcitabilidade digital parece TDAH
Os comportamentos descritos acima lembram os sintomas do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH): impulsividade, inquietação, dificuldade de manter atenção.
Mas há um risco importante: confundir hiperexcitabilidade digital com TDAH verdadeiro.
As causas mais comuns
Uso noturno de telas prejudica o sono, essencial para a consolidação da memória e regulação da atenção.
Exposição intensa a recompensas digitais (likes, jogos, vídeos curtos) diminui a tolerância ao tédio e aumenta a busca por estímulos rápidos.
Sobrecarga sensorial causada por horas em ambientes digitais barulhentos e multitarefa reduz a capacidade de sustentar foco em contextos analógicos, como a sala de aula.
Estudos longitudinais (Ra et al., JAMA, 2018) mostram que uso frequente de mídias digitais em adolescentes sem histórico prévio foi associado a aumento de sintomas semelhantes ao TDAH após 24 meses de acompanhamento. Importante ressaltar: isso não significa que as telas “causam” TDAH, mas que podem amplificar ou mimetizar sintomas, aumentando o risco de diagnósticos equivocados.
O que a ciência mostra sobre sono, atenção e telas
O sono: base biológica da atenção

Revisões sistemáticas (JAMA Pediatrics, 2018) mostram que o uso de telas próximo à hora de dormir está ligado a:
maior latência para adormecer,
menor qualidade do sono,
sonolência diurna.
A privação crônica de sono impacta diretamente aprendizagem e comportamento: crianças menos pacientes, mais irritáveis e com menor capacidade de foco.
Atenção e impulsividade
Estudos recentes (Nature, 2023) confirmam que o uso intenso de mídias digitais está associado a pior desempenho em memória de curto prazo, atenção sustentada e maior impulsividade.
Ou seja: o aluno chega à escola já em desvantagem cognitiva.
Sistema de recompensa e dopamina
O quadro traz duas grandes consequências:
1. Diagnósticos equivocados e medicalização precoce
Quando sinais de hiperexcitabilidade digital são confundidos com TDAH, há risco de medicalização desnecessária, com uso de medicamentos em situações que poderiam ser resolvidas com ajustes ambientais e de rotina.
2. Queda no desempenho escolar
Pesquisas internacionais (OECD, 2023) mostram que mesmo em países com restrições de celulares em aula, os efeitos do uso doméstico continuam se refletindo em menor concentração, queda de desempenho e aumento da ansiedade escolar.
A lei foi um avanço, mas não resolve o problema de base.
O que políticas públicas e escolas podem fazer

A escola não pode resolver sozinha um problema que nasce fora de seus muros. É necessário articular educação, saúde e família em torno da neurociência da atenção.
1. Campanhas públicas de sono e telas
Comunicação em massa sobre os riscos do uso noturno de dispositivos.
Orientação para pais: pelo menos 90 minutos sem telas antes de dormir.
2. Triagem antes de diagnóstico de TDAH
Protocolos escolares e de atenção primária devem incluir perguntas sobre rotina digital e sono antes de encaminhar para avaliação clínica.
Somente após intervenção ambiental e persistência dos sintomas é que se deve avançar para diagnóstico formal (AAP, 2019).
3. Formação docente
Capacitar professores para diferenciar distração situacional (por sono ou estímulo digital) de sinais persistentes de TDAH.
Ensinar abordagens de regulação emocional e foco para turmas pós-digitais.
4. Parceria com famílias
Oficinas e guias sobre higiene digital doméstica.
Incentivo a rotinas de convivência sem tela: refeições, brincadeiras, esportes.
O papel do Método FOCAR nesse cenário
O Método FOCAR funciona como uma estrutura prática e científica para reorganizar a rotina digital das famílias e reduzir os impactos que chegam à escola.
F – Filtro Ambiental: reorganizar o ambiente doméstico para reduzir estímulos (quarto sem telas, zonas de foco).
O – Organização da Recompensa: incentivar atividades offline que estimulem prazer e motivação natural.
C – Conexão Afetiva: fortalecer vínculos e escuta ativa, substituindo punição por diálogo.
A – Autorreferência: adultos como modelo de autorregulação e uso consciente.
R – Ritmo Biológico: restaurar sono, alimentação e rotina como bases neurobiológicas da atenção.
O foco do FOCAR é equilíbrio digital, não abstinência. A tecnologia pode ser ferramenta de aprendizagem, desde que o cérebro tenha espaço para descanso, presença e foco.
Conclusão: o problema mudou de lugar

O banimento dos celulares em sala de aula foi uma medida importante. Mas o desafio da atenção não acabou: ele apenas mudou de endereço.
Hoje, o foco das crianças e adolescentes está sendo drenado dentro de casa,
e seus efeitos se manifestam na escola, em forma de desatenção, irritabilidade e fadiga.
Se quisermos proteger a aprendizagem e a saúde mental das próximas gerações, precisamos ir além da proibição:
apoiar famílias,
formar professores,
e alinhar saúde e educação em torno da neurociência do foco.
A atenção é um recurso coletivo. E cuidar dela começa dentro de casa.
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Referências
Ra, C.K. et al. (2018). Association of Digital Media Use With Subsequent Symptoms of ADHD in Adolescents. JAMA.
Ward, A.F. et al. (2017). Brain drain: The mere presence of one’s own smartphone reduces available cognitive capacity. J Assoc Consumer Res.
Carter, B. et al. (2018). Association between portable screen-based media device use and sleep outcomes. JAMA Pediatrics.
Nature (2023). Screen time, impulsivity, and neuropsychological functions in adolescents.
ScienceDirect (2025). Prospective Predictors of Adolescent Screen Time and Problematic Use (ABCD Study).
OECD (2023). Students, Digital Devices and Success.
AAP (2019). Clinical Practice Guideline for the Diagnosis, Evaluation, and Treatment of ADHD in Children and Adolescents.





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